Ci.da.de

E ele adorava cidade. Não qualquer uma nem uma específica. Tampouco todas elas. Talvez gostasse da palavra em si. Ci.da.de, sf (lat civitate) 1 Povoação de primeira categoria em um país; no Brasil, toda sede de município, qualquer que seja a sua importância. 2 Os habitantes dessa povoação: A cidade vai eleger seu prefeito. 3 O núcleo principal ou centro urbanístico dessa povoação, onde estão geralmente localizadas as casas comerciais mais importantes: Este ônibus vem da cidade. 4 Grande formigueiro de saúvas constituído de vários alojamentos ou panelas. Ou não, porque não gostava de formigas. Mas ela, sempre ela, insistia em manter a sua irredutível necessidade de existir (a mercê dele) de fato, sem palavras. Ela tinha mania de formar ambiente e ser construída e utilizada (por ele também) plenamente. E ele adorava cidade. Daquele jeito cafajeste, com sorriso no canto, sabendo que poderia dar suas escorregadas que mesmo assim ela o perdoaria. Era uma relação não só física e não só platônica. Daquelas que a gente não sabe classificar, sabe? Só sei que ele gostava e gostava justamente porque via a possibilidade de descobrir significados recônditos não evidentes através dela. E só ela ofereceria isso a ele. Só ela.

Porque nela ele andava altivo, comia na rua e com a mão bem do jeito que sua mãe não o ensinou. Livre. Livre porque bailava sua existência de fato através de seus espaços recipientes. Livre porque atuava alterando comportamentos (os seus e dos seus), dando voz para suas dúvidas, anseios, pensamentos e posições. Cantava e dançava com qualquer barulho que ouvia quando a percorria, se perdendo em suas curvas e desvendando seus segredos mais bem guardados. Livre. Quase como um pássaro que voa em paisagens cafonas que a gente recebe em PowerPoint mandados pelos pais por email.

E eles beiravam o relacionamento perfeito. Juntos mas autônomos. Ele poderia amar qualquer cidade. Ela era amada por milhares de-eles. Mas eram um do outro. Simples assim. Nem tudo é doçura, é verdade. Quando viaja é um sofrimento pra ela. Promíscuo, oferece amor por cada uma que passa. Ela sempre se envolve completamente e ele pega sua mochila surrada em busca de novos amores, novas histórias. Mas ela curte essa cafajestada, lembram? E a regra é clara segundo Arnaldo Coelho: a gente nunca se apaixona pelo bonzinho, certinho, pelo que penteia o cabelo com aquele pente que vô leva no bolso da calça. A gente ama os bonzinhos, mas não é disso que se trata. Paixão a gente tem pelos cafajestes. Tenho pra mim que ela, ou melhor todas elas, sejam de câncer. Do tipo que sofre bonito. Que sai pra dançar e beber com as amigas mas não vê a hora de chegar em casa. E seus olhos brilham toda vez que encontra ele jogado na cama lendo algum autor alemão que ninguém entende. Só ele. Ela derrete. E ele a olha como se ele tivesse aprontado. Sim, ele. Apenas com um livro de um autor com mais consoantes do que vogais. E mais ninguém.

Relação difícil, estranha, confusa, mas intensa. E toda vez que me lembro dele com ela, imediatamente me vem à cabeça desenhos. E deixo claro que sempre me lembro de desenhos quando eles estão assim, apaixonados, encantados, enlouquecidos. E desenhos de criança feitos pelo impulso e plenitude da infância. Aqueles em que a princesa tem o rosto azul, o cavalo tem três patas. Aqueles mesmos que trazem de brinde um teco do bolo de chocolate e que são cem por cento reais e cem por cento imaginação.

Mas melhor do que pensar neles é vê-los juntos. Ele com sua velha mochila suja, se encantando com suas sempre novas curvas. Ela apaixonada por esse moleque cafajeste que a deixa assim: sentindo-se única.

 

texto publicado no malvadezas.

Postado por: Antonio



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